domingo, 20 de fevereiro de 2011

Paciente J.Q.O. A verdadeira fome.

Tem uma coisa que precisam saber sobre mim: eu tenho uma dupla. Sim, no internato geralmente estamos em duplas. E a minha é o Vitor. Como definir o Vitor... Bem... Ele... Precisa de uma "chupeta" no 220v de vez em quando pra funcionar. XD Hahahahaha! Mas é super gente boa. Só assim pra aguentar a minha xaropisse.



Tenho várias histórias pra contar. Histórias sobre a vida de pessoas que já se foram, histórias sobre mim, histórias sobre Deus... Enfim. Me disseram que eu sou uma "vaca leiteira" de tanta história. Hahahahaha!

Vou contar hoje a história do seu *Francisco. Vamos chamá-lo assim.
Meu internato em Cirurgia começou em dezembro, e já na primeira semana estava lá o seu Chico. Diagnóstico: câncer gástrico avançado. Ele tinha o estômago tão grande que achamos que era o baço super aumentado, de tão enorme. Vinha até o pé da barriga.
Um senhor meio gordinho, nos seus 50 anos.
Ele estava em nutrição parenteral total, uma dieta que vai na veia. Não podia comer nada porque o estômago apesar de grande, não funcionava direito.
Então eu comecei a imaginar... Imaginar o que seria não poder comer. Ver todas as outras pessoas comendo na hora das refeições e só você ali, sentado, sem poder comer nada.
Só isso já renderia um livro!
Os dias iam se passando, vários pacientes entravam na enfermaria, eram operados, saíam e só o seu Chico ficava lá. E ele perguntava da esposa, dona *Maria: "Por que todo mundo é operado, menos eu? Não estão fazendo nada por mim!"
Após 1 mês na enfermaria a barriga dele começou a inchar, cheia de líquido, o que chamamos de ascite. Efeito do câncer que já tinha se espalhado. Isso tornou a possibilidade de uma cirurgia para retirada do estômago praticamente impossível.
Nesse ponto ele já não conseguia mais beber água. O estômago não aceitava, colocava para fora. Então restringimos sua dieta a zero. Dieta zero no hospital significa zero tudo, até água. E foi assim que ele passou, até seu último dia.
Com muito custo foi feita uma cirurgia para fazer um caminho no estômago e ultrapassar o tumor, para que ele pudesse se alimentar.
Nesse meio tempo eu sempre pedia ao Senhor pela cura dele. Sempre conversava com a dona Maria sobre Deus. Uma família que se convertera pela dor, pela doença. Ela mal pôde experimentar a vida na igreja e já foi para o hospital com o marido. E não sei como, encontrou em mim uma irmã em Cristo.
E seu Chico definhava, emagrecia, com aquela barriga enorme, semelhante a uma mulher prestes a dar a luz. Sem poder comer, sem poder beber água, vendo vários pacientes irem e virem, curados de seus tumores, e ele ficava para trás...
E isso o entristecia. E me pergunto até hoje o que será que ele falava com Deus.
Sua filha estava gestante de 6 meses e perdeu o bebê, isso enquanto ambos, pai e mãe estavam no hospital. E essa mãe, dona Maria, foi privada de estar com sua filha no pior momento da vida dela, de cuidar. E essa filha, além de perder o filho estava perdendo o pai.
Imaginem carregar o peso de toda uma família sozinha... Pois todos os familiares do seu Chico cobravam dela alguma atitude, culpavam-na. E essa mulher continuava lá, sorridente. Até ajudava outros pacientes! Mudou a vida de um senhor que teve o braço amputado. Mas essa é outra história.

E essa mulher via em mim uma filha de Deus, uma enviada do Senhor para ampara-la. E eu pensava: Deus, quem sou eu? Quem sou eu pra suportar alguém? Como essa mulher pode pensar tanto assim de mim?
E eu continuava lá, todos os dias... Vendo aquele homem emagrecer, seu corpo todo edemaciado, seu abdome cheio de líquido, vomitando sangue escuro todos os dias, a morte chegando mais perto.
Ele sabia que ia morrer e não demoraria. E isso o deixava muito triste, eu via em seu olhar.
Tivemos uma esperança com a cirurgia para ele voltar a se alimentar, mas foi vã. Confesso que no momento em que abrimos seu abdome minha expectativa era a de um milagre. Eu estava tão certa dele. Porém tudo o que vimos foi um tumor gigantesco que invadia tudo com pequenos focos de metástase de incontável número em todo o intestino.
Naquele momento toda a minha esperança se foi.
E eu perguntava pra Deus: você vai deixar esse homem sofrer assim? Por quê? Pra que?
Mais uns 15 dias se passaram, marido e mulher frustrados pelo insucesso da cirurgia. Ele não conseguia se alimentar ou beber água. Toda a esperança deles se foi também.
Imagine... Imagine-se passando 2 meses, 60 dias, sem comer ou beber nada. Nada. Nada! Imagine o sofrimento! Até os presos no corredor da morte têm direito a uma última refeição... Eu pensava nisso todos os dias, sempre que eu ia comer ou beber alguma coisa.

Só restou em todos nós a esperança em Deus. De que Ele faria o melhor.
E assim num sábado o seu Chico se foi, em agonia, vômitos, dor e sofrimento. Mas ele cria em Jesus e que aquele sofrimento era temporário. E então recebeu alta celestia, em janeiro de 2011.
Liguei pra sua esposa 2 dias depois, e ela me disse o seguinte: "Quero continuar indo lá no hospital, ajudando as pessoas a passarem por essa situação, como você fez conosco. Você foi um anjo de Deus em nossas vidas."
Isso me deixou muito feliz, a atitude dela, de superar todo o sofrimento e fazer a vontade do Senhor. De, mesmo perdendo tudo naquele momento, dar graças.

Me marcou. Nunca vou esquecê-los. Não sei como meus colegas conseguem passar por estas pessoas e não as ver, e não perceber seu sofrimento, e olha-las como apenas doenças.

Ver o seu Chico me lembrava todos os dias: nem só de pão viverá o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus. Mateus 4:4. Jesus é a água viva, que mata a nossa sede interior. Jesus é o pão que mata a fome da nossa alma. Só nEle nos sentimos verdadeiramente saciados.

Não é fácil, assim como não foi pro seu Chico. Mas não é impossível. Ainda estou descobrindo como viver assim. E não vou desistir. =)



Depois de tanto perguntar, encontrei a resposta. ^^

Medicina: como eu vim parar aqui.

Bom, pra falar das minhas experiências e para que entendam uma parte de como me sinto a respeito delas, vou relatar como eu vim parar aqui.
Sim, porque medicina nunca foi o meu sonho. XD
"Mas como uma pessoa pode fazer medicina sem ser seu sonho???" Por obediência.
Eu sempre me dei bem com animais e queria muito ser bióloga, apesar de tudo o que diziam sobre a profissão e as condições de remuneração ruins. Era o meu sonho, desde criança. Motivada pelo meu pai e pelas dezenas de bichos que já criamos em casa (desde bodes, até poraquê, peixes, cães, gatos, lagartos, periquitos, abelhas, morcego... enfim. ^^) eu fui alimentando esse desejo.


Estudava desde bem novinha pensando no vestibular. Eu nem sabia o que era vestibular! Hahahahaha.
Mas chegou o ano que mudaria minha vida para sempre.
Na época eu estudava no Colégio Adventista, fazia cursinho no Giga à noite (ganhei meia bolsa num simulado!), inglês na Cultura Inglesa à tarde (onde eu também dava aula pra ajudar a pagar o curso), e na madrugada fazia bombons pra vender e rolar uma grana.
Chegou o dia da inscrição. Eu estava sentada no computador lá na sala, e já ia selecionando "Biologia" quando... Quando ela apareceu. Ela. O general da casa: minha mãe.
Resumindo: ela mandou que eu colocasse pra Medicina. Liguei pro meu pai em lágrimas, dizendo que aquilo era injusto, que tinham mentido pra mim dizendo que eu escolhesse o que quisesse. Eis que ele me diz: obedeça a sua mãe, pois Deus não gosta de filhos desobedientes.

Véi... Foi um balde de água fria. E eu, pela primeira vez na vida falei: Deus, eu vou obedecer, mas o Senhor toma alguma providência quanto a isto!


E hoje estou aqui. =)

Claro, foram uns 2 anos pra eu aceitar que ali era o meu lugar, e mais 2 pra eu fazer parte dele. Mas foi aí que eu comecei a perceber o óbvio: Deus interfere na minha vida para o meu bem.
E isso mudou tudo.
Ezequiel 33:17.

Internato: e agora?

Eu deveria ter começado a escrever este "diário" em agosto de 2010, pois foi aí que o primeiro dia dos meus 2 anos de internato médico começou.
O internato de medicina é um período onde academicamente os alunos colocarão em prática o que aprenderam nos 4 ou 5 anos anteriores. Bom, isso é o que dizem pra nós quando entramos na faculdade. =P
Mas só descobrimos o que realmente é o internato dia após dia dentro dele.
Em alguns lugares eles preferem o termo doutorando, já que interno soa como alguém internado. XD Porém é isso o que somos: alunos internados em um hospital. Internos.
Na minha universidade temos 2 anos de internato, divididos em 6 rodízios de 2 meses cada, que se repetem ao fim do 1º ano. São eles: Saúde Coletiva, Optativa, Clínica Cirúrgica, Clínica Médica, Obstetrícia/Ginecologia e Pediatria. Eu comecei em Saúde Coletiva e atualmente estou em Clínica Médica.


Na maioria das vezes colocarei aqui relatos soltos. Outras, orderarei cronologicamente. Mas no geral tentarei mostrar um pouco do que vivo.

Espero que tenha algum proveito para alguém além de mim. =)

Deus os abençoe em Sua infinita graça e bondade.